Manifesto de Fundação

Manifesto de Fundação do Bloco da Abolição

São Paulo, 20 de fevereiro de 2011.

Um espectro ronda o Bixiga: o espectro do abolicionismo. Vindos de toda parte, corpos começam a se sacudir para receber, uma vez mais, esse velho espírito do povo brasileiro. E diante da sublevação festeira, os poderosos da Paulicéia — de gravata e capital e acostumados a nunca se darem mal — reagem a seu modo.

Lançam-nos a indiferença, como se bloco de marchinha à fantasia em São Paulo não mais fosse possível. No entanto, seguimos acendendo velas nos becos e falando alto pelos botecos. Então, em nome das leis do silêncio, das regras de convivência fria e da paz dos cemitérios, anunciam as autoridades que nos vão proibir a certidão-pra-nascer e a concessão-pra-sorrir. Ao que respondemos: desde quando o samba pede autorização pra passar? Por fim, percebendo que a torrente de barulhentos comerciais de tevê, exposições de mulheres-frutas, jingles martelantes e outras pirotecnias midiáticas da estação não dominam os corpos dançantes, os senhores da ordem acusam-nos de querermos acabar com a rotina, com a caretice, com os bons-modos e os direitos de propriedade sobre o trabalho alheio.

Pois saibam que confessamos desse crime! E cantando com nossos ancestrais, a ele chamamos Carnaval, mesmo sabendo que a grande festa da Abolição Brasileira ainda está por ser feita, como nos relembra, entre outros bambas, o professor Florestan. Mas enquanto isso e até para ir construindo esse dia, a gente segue trabalhando o ano inteiro, pra fazer a fantasia, de rei ou de pirata ou jardineira, e tudo se acabar na quarta-feira…

Foi assim na Confederação dos Tamoios, na Inconfidência dos Mineiros e na Conjura dos Baianos. Cabanagem, Balaiada e Sabinada. Na revolta dos Malês, na Praieira e no Quilombo dos Palmares. Nas guerras de Contestado e Canudos. Foi assim na revolta da Chibata, na Coluna Prestes e no Levante de 35. Igualmente o foi nas Ligas Camponesas e nas Greves Gerais. Na Campanha da Legalidade, na Luta Armada, nas Diretas e na Constituinte. Numa palavra: na glória de todas as lutas inglórias, que através da nossa história jamais esqueceremos, passou, ainda que por um breve tempo, um rio em nossas vidas.

É sobre essa memória que se funda o Bloco da Abolição — de tempos em tempos, Brasil afora. Falemos então do nosso — e daria um filme! Solitários na floresta de concreto e aço, vez em quando olhamos os rostos da multidão e a vemos como um monstro, sem rosto e coração. A pressa não deixa tempo para a vida — menos ainda para a do outro. Como disse o sambista: uns com tantos e outros tantos com algum; mas a maioria sem nenhum. E os que se sentem ameaçados respondem com racismo, com discriminação aos imigrantes, com violência machista e homofóbica — e ainda querem chamar isso de piada! Mesmo em fevereiro a segregação se reproduz. A indústria cultural toma conta de grandes espetáculos. Surgem abadás, cordas e camarotes. E nos convidam a sermos a platéia.

Mas aqui não violão! O Bloco da Abolição é rebelde, negro-forte, destemido e enfeitiçado. Embora tão acostumados com o adverso, temendo que um dia nos machuque o verso, temos vontade é de tocar viola de verdade. Pra abolir a indiferença, o egoísmo e o preconceito. Abolir o nariz empinado, as vergonhas e as catracas. Abolir a mercantilização do corpo e da mente. Abolir o elevador de serviço, a alternatividade blasé e a esperança que só espera. Cantar para abolir a tristeza, o pecado e a solidão. E reconquistar a cidade perante os automóveis. Sair à rua vestindo nossos sonhos, brincando com alguém, jogando sorrisos, confete e serpentina. Vamos inverter os papéis e rasgar alguns deles. Já dizem os ditados: rindo se muda os costumes; e a liberdade de um começa onde e quando a do outro começa também.

Com a bênção do Samba Paulista e da Lona Preta — pais do prazer e filhos da dor — vamos instituir o império do amor; a Vila Esperança; a Unidos da Casa é Sua. Celebrar a poesia concreta de cada esquina e ver o samba amanhecer. Agora não tem mais jeito. Ninguém segura este cordão. Túmulo do samba não! É mais possível um novo Quilombo de Zumbi.

Viva o Carnaval! Viva o Samba, voz da Abolição!

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